POESIA: a transitividade do ser



“O poema é, de modo mais ou menos consensual, caracterizado como um texto escrito (primordialmente, mas não exclusivamente) em verso. A poesia, por sua vez, é situada de modo problemático em dois grandes grupos conceituais: ora como uma pura e complexa substância imaterial, anterior ao poeta e independente do poema e da linguagem, e que apenas se concretiza em palavras como conteúdo do poema, mediante a atividade humana; ora como a condição dessa indefinida e absorvente atividade humana, o estado em que o indivíduo se coloca na tentativa de captação, apreensão e resgate dessa substância no espaço abstrato das palavras.


Se o poema é um objeto empírico e se a poesia é uma substância imaterial, é que o primeiro tem uma existência concreta e a segunda não. Ou seja: o poema, depois de criado, existe per se, em si mesmo, ao alcance de qualquer leitor, mas a poesia só existe em outro ser: primariamente, naqueles onde ela se encrava e se manifesta de modo originário, oferecendo-se à percepção objetiva de qualquer indivíduo; secundariamente, no espírito do indivíduo que a capta desses seres e tenta (ou não) objetivá-la num poema; terciariamente, no próprio poema resultante desse trabalho objetivador do indivíduo-poeta. Este é o problema fundamental: se a poesia está no mundo originariamente, antes de estar no poeta ou no poema - e isso pode ser comprovado pela simples constatação popular de que determinados objetos/situações do mundo são ‘poéticos’ – ela tem a sua existência literária decida nesse trânsito do abstrato ao concreto, do mundo para o poema, através do poeta, no processo que a conduz do estado de potência ao de objeto. Então, podemos deduzir que a existência primordial da poesia se vincula à daqueles seres que exercem algum influxo sobre o sujeito que entra em contato com eles e o provocam para uma atitude estética de resposta, consumando o trânsito - da percepção à objetivação - mediante uma forma qualquer de linguagem.


Quais são esses seres?


A princípio, todos: tudo o que está no mundo pode provocar alguma coisa no ser humano. Mas, se todos os objetos/situações podem exercer essa provocação, alguns usualmente não o fazem.


Quais sim e quais não?


Os que exercem são aqueles que não se esgotam em si mesmos, que têm alguma força de sugestão para transitar do mundo para o espírito do homem e nele provocar um estímulo que solicita resposta: portanto, objetos/situações transitivos. Esse estímulo brota, não do objeto por si, mas por alguns de seus aspectos – exatamente aqueles onde se instala e donde decola a transitividade do ser. Como vemos facilmente: 1) não retemos nossa atenção em qualquer fato, mas apenas em alguns fatos, de acordo com seu índice de freqüência; 2) não nos rebelamos contra qualquer perda, mas apenas contra a perda, quando ela assume uma determinada dimensão; 3) não nos detemos a contemplar qualquer paisagem, mas apenas certas paisagens, com uma certa configuração. Portanto, nestas referências concretas, não é nem o fato, nem a perda, nem a paisagem que – por si mesmos – nos provocam uma reação, mas sim algum atributo do fato, da perda, da paisagem, que precisamos identificar. Então, se quisermos proceder a uma caracterização rigorosa da poesia, temos de deslocar o foco de investigação da generalidade dos objetos/situações para a particularidade de seus aspectos. Pois não são as coisas, por si mesmas, que provocam o ser humano, mas apenas os aspectos transitivos das coisas, através dos quais elas se exteriorizam e se manifestam numa provocação aos nossos sentidos, à nossa sensibilidade ou à nossa consciência.”




LYRA, Pedro. Conceito de poesia. São Paulo: Ática, 1986. p. 7-8.



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