“APAIXONADAMENTE”



por: Oscar Mendes


Reler, na idade madura, livros que nos encantaram na mocidade, é sempre um prazer a que não falta um travo de saudade. Às vezes, desta releitura colhem-se desilusões. O encantamento de outrora evaporou-se, como um perfume sutil. Nem mesmo uma débil ressonância do alvoroço de outrora sentimos vibrar na nossa sensibilidade. Tudo parece desbotado, morto, cinzento, sem significação e beleza.

Outras vezes, porém, a leitura de um livro está tão ligada a outras emoções e acontecimentos que revivem dentro de nós, embora atenuadas pelo tempo, muitas daquelas emoções antigas, agora não mais tão intensas e ferinas, e voltamos ao passado que ressurge diante de nós como um sonho, ou como um filme de que somos não mais atores, porém espectadores.

Outros livros há, ainda, que não perdem de todo o encanto antigo e ao passar-lhes as páginas encontramos, após vários trechos que hoje nos deixam indiferentes ou contra eles nos armam de olho crítico, o mesmo prazer e o mesmo encantamento que sentimos quando pela primeira vez nossa sensibilidade neles se dessedentou.

Releio agora, por exemplo, tantos anos depois duma primeira leitura, um livro de versos que me encantou na mocidade, justamente naquele período de vida em que, quando não se é poeta, ama-se a poesia e todo aquele que pode interpretar em versos o nosso mundo de emoções primaveris. Quando a poetisa portuguesa Virgínia Vitorino apareceu no mundo literário, sua poesia tinha qualquer coisa de tão puro, de tão límpido, de tão sincero, que imediatamente se tornou ela o poeta preferido dos que andavam cansados da rigidez parnasiana e das nebulosidades do simbolismo.

Seu livro de estréia “Namorados”, em que, em versos duma frescura juvenil, eram expressas com sutileza e graça as emoções primeiras do amor, tinha um tom de tamanha sinceridade, era tão simples na sua forma cristalina e cândida, que encantava a todos quantos o liam. Quem poderia esquecer aquele pequeno drama emocional que Virgínia Vitorino condenava nos catorze versos do soneto “Pelo Telefone”? Depois veio outro livro, este “Apaixonadamente”, que agora releio, na sua sexta edição (Edições Dois Mundos – Brasil, Portugal – 1945), com a mesma simplicidade de forma e a mesma melancolia serena.

“Apaixonadamente” faria supor, pelo título, que teríamos, em grau maior, a emoção amor-rosa de “Namorados”. Mas da leitura de seus versos se depreende logo que a “paixão” que os informa, não é o movimento desencadeado das emoções ativas, aquecidas ao rubro, mas a paixão sofrimento, a paixão resignação. E como prova de ser este o tom geral do livro, encontra-se logo após o soneto que explica o título, este outro, “Lucidez”, em que a razão prepondera sobre o coração e não o deixa iludir-se, num conhecimento lúcido do engano amoroso, aquele “engano d’alma ledo e cego”, de que já falara o grande patrício de Virgínia Vitorino.


“Guardo, enquanto puder, esta ilusão,

- ilusão que afinal me não ilude... -

Sei que nada há na vida que não mude,

nem mesmo há eternidade na paixão.


Tenho sido talvez violenta, rude,

Para o meu pobre e triste coração!

Mas nunca soube ouvir-me! Foi em vão

que para o convencer fiz quanto pude!


Hás-de mentir-me, eu sei, mas muito embora!

Diz-me sempre e sempre, a toda a hora,

as palavras que gosto de te ouvir!


Conscientemente, vou queimando as asas...

Sou como alguém que olhe o rubor das brasas

na certeza das cinzas que hão-de vir.”


Não há gritos de paixão no seu livro, não há desespero. Há essa serenidade triste dos que aceitam resignadamente a vida nas suas ilusões e nas suas misérias. Não há dramas pungentes, nem profundezas psicológicas. Mas sabem seus versos exprimir com agudeza e sinceridade certas tonalidades sutis do sentimento amoroso, como no soneto “Hesitação”, que já tive a oportunidade de citar, em escrito anterior, nesta revista, ou em “Capricho”, em que a amada cheia de ciúmes por ver o amado exageradamente “ao pé de toda a gente”, preferindo tê-lo ansioso e sucumbido, de lágrimas a bailar-lhe nos olhos, confessa o seu contraditório desejo:


“Assim teria um prazer raro e doce

eu, que para evitar-te uma que fosse

era capaz de dar a minha vida!”


Em muitos de seus versos sente-se plenamente a emoção das grandes amorosas, aquela oferta irrevogável de si mesma, aquela resignação ao sofrimento amoroso e à ingratidão, aquela humildade das que se entregam sem exigências, num obscuro senso de que o amor é dádiva e não troca de favores.




MENDES, Oscar. “’Apaixonadamente’”. In: Revista Alterosa. Belo Horizonte, MG: ano VIII, nº 69, janeiro de 1946, p. 52.



Virgínia Vitorino (1895-1967). Poetisa e escritora teatral, com o Curso de Filologia Românica da Faculdade de Letras de Lisboa, de piano, canto, harmonia e italiano do Conservatório Nacional de Lisboa. Professora do liceu, trabalhou também na Emissora Nacional onde dirigiu o teatro radiofónico. Publicou vários livros de versos e peças teatrais, muitas das quais foram levadas à cena no Teatro Nacional D. Maria II. Recebeu o prémio Gil Vicente do SNI pela peça Camaradas. Tem vasta colaboração espalhada por jornais e revistas portuguesas e brasileiras.


Disponível em: http://purl.pt/13858/1/geneses/2/3-184.html




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