Absorventes absorvem a qualidade da intimidade



ALMODOVAR, Pedro. Fogo nas Entranhas. Rio de Janeiro, RJ: Dantes Editora, 2000, 124 p..





por Carmela Toninelo


John Gray, um ex-monge casado, e fino observador dos relacionamentos humanos, transformou suas anotações num best-seller do entretenimento popular chamado Homens são de Marte; Mulheres são de Vênus. A crítica sugeria que o livro era um requisito indispensável para quem quisesse atingir um grau mais profundo de intimidade e uma compreensão mais plena de seu parceiro. Concordar ou não é um caso a parte, o fato é que John Gray cometeu um erro fatal ao esquecer de incluir em suas anotações o complexo mundo feminino dos absorventes.

E não que Fogo nas Entranhas (Dantes Editora, 124 págs., R$ 18) seja um guia prático para a compreensão de ambos os sexos, mas Vênus e Marte sempre se atraíram e o humor mesclado com o coito sempre foi a atração inspiradora de Pedro Almodóvar. Um homem espanhol que nunca negou a raça e observa finamente os relacionamentos humanos, bem como não esquece a presença de absorventes, mês a mês, entre as pernas das mulheres.

Há quem diga que Pedro Almodóvar só fazia filmes pornôs antes de escrever esta novelinha safada em 1981. Afinal, a paixão de Almodóvar por divertidas perversões, ambientes gays e inferninhos já chegou ao público em filmes como Labirinto de Paixões de 1982 e nos explícitos títulos Sexo Vai, Sexo Vem... de 1977 e A Queda de Sodoma de 1975. Mas este livrinho de bolso da Coleção Babel - focada na pornografia, no sensacionalismo e na literatura underground - é dessa época. Como em Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos de 1988, as mulheres são as protagonistas soberanas de Fogo nas Entranhas (que Regina Casé traduziria para 'Calor na Bacurinha' - conselho, leia o livro e só depois a introdução. Regina por absortas páginas quis ser mais Almodóvar do que ele próprio tende a ser).

A história trata de um grupo bizarro de cinco mulheres, moldadas pelo autor para instigar qualquer tipo de fantasia sexual: uma chinesa, uma frígida, uma ex-espiã disfarçada, uma figurante de faroestes europeus e uma assistente de laboratório químico, que um belo dia foge para Ibiza com um grupo de hippies levando só a roupa do corpo. Todas "vadias" e ex-mulheres de um chinês sentimental, dono de uma fábrica de absorventes íntimos - que de tanto ser traído se transforma no vilão da história. Em sua vingança, Chu Ming Ho condena todas as mulheres de Madri a se tornarem escravas do desejo.

Vinte e cinco breves capítulos e há mais personagens bizarros para serem analisados. A anciã de setenta anos ainda virgem, mestra de enganar-se a si própria e Roque, um marido quase exemplo de toda boa casa onde reina o desejo carnal. Como em um barato folhetim pornográfico, há mocinha na história. Aqui ela não podia deixar de ser uma ex-freira - de uma sensatez insana, imprópria de uma heroína. Mas a marca inconfundível de Almodóvar está ali: além do humor deslavado, a incrível habilidade de reunir fragmentos distantes da vida e atá-los em um só nó.

Almodóvar sabe atrair, e não apenas pelo sexo, pela amizade ou casualidade. O espanhol ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro ano passado por Tudo sobre Minha Mãe tem o dom de conduzir todos os seus personagens a uma única e derradeira cena final. Seja em novelinhas, seja em filmes pornográficos, o Pedro é a pedra da intimidade. Ele sempre soube ir a fundo nas entranhas humanas.


Carmela Toninelo é editora do revista Viés - www.vies.unisinos.br




Disponível em: http://www.screamyell.com.br/literatura/fogo.html .


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