Os segredos do adjetivo




Maria Helena Moura Neves


Aprendemos durante a vida toda que adjetivo é a palavra que qualifica o substantivo. Como ocorre com tudo o que se aprende de “gramática” na escola, ninguém nos desafiou a pôr essa definição à prova. Ninguém nunca nos pediu, por exemplo, que disséssemos qual a qualidade que está sendo atribuída ao substantivo hospital, quando a ele se junta o adjetivo infantil, ou ao substantivo perícia, quando a ele se junta o adjetivo médica.


Se tivessem feito isso enquanto éramos aluninhos, já naquela primeira vez em que a categoria “adjetivo” nos foi apresentada, com certeza nos teriam posto em situação de dizer: “Não sei”, e de provocar alguma discussão. Como teria sido bom, já que discutir questões, afirmações, categorizações é o que mais a escola tem de fazer! Saídos da escola, profissionais já, possivelmente até professores de português, talvez ainda nos perturbemos um pouco se tivermos de pôr tal definição à prova.


Como se percebe, a conceituação que nos dão é, no mínimo, inexata. O conceito de adjetivo teria de ser tratado de forma complementar ao de substantivo (comum). A característica do substantivo é constituir a descrição de uma classe de elementos, isto é, a expressão do feixe de propriedades de uma classe. Com efeito, hospital é substantivo porque nomeia qualquer entidade que tenha as propriedades que façam dela um “hospital” e infantil” é adjetivo porque vem trazer a esse feixe mais uma propriedade (“que atende crianças”). Com o conjunto de substantivo e adjetivo, estaria referido um certo subtipo de hospital, uma subclasse.


A restrição do feixe de propriedades que conceituam “hospital” poderia ter sido de outra ordem, por exemplo, se dissesse “hospital conceituado”. Do mesmo modo a referência não seria a qualquer hospital, só que a restrição agora seria por qualificação, e aí sim, poderíamos dizer que o adjetivo está qualificando o substantivo. (...)


A importância de saber isso está em ficar evidenciada uma preocupação com o rigor dos conceitos. É algo que afeta a formação geral de todos e de que, portanto, nunca se pode abrir mão. Repetir definições errôneas é, afinal, bloquear o progresso na construção do conhecimento. (...) O importante na questão é que ou conceituamos com consistência e rigor as entidades, quando nos detemos a fazer definições, ou descartamos a tarefa, o que será uma boa opção, se, por exemplo, na escola, ela resultar de um bom planejamento que escalone os conceitos que devem ser trabalhados, numa boa progressão.


Basta olhar para o famoso quadro da gramática tradicional denominado grau dos adjetivos para ver que alguma coisa está errada no andamento das lições: qual o comparativo de superioridade de infantil na expressão “hospital infantil”? Mais infantil do que? E qual o superlativo? Muito infantil? Infantilíssimo?


Dizemos, sim, “Fulano teve um comportamento muito infantil, infantilíssimo.” Aí é que vemos como funciona a língua. Ela combina léxico (o vocabulário) e gramática (a organização). Quanto à gramática, veremos que adjetivos que não indicam qualidade, mas marcam subtipos (os classificadores), como em perícia medica, não podem ser intensificados (formando superlativos), e só em casos especiais podem ser quantificados (formando comparativos), porque essas operações gramaticais de intensificação e quantificação não incidem, em geral, sobre a indicação de uma simples subtipologização de pessoas, objetos, entidades. (...)


Não é dar denominações a subclasses da categoria adjetivo que interessa propriamente (embora, em qualquer ramo do conhecimento, tenhamos sempre de ter nomes para falar das coisas), mas é importante falar de gramática tendo mente que ela é a própria organização dos enunciados, e falar dela é falar do uso lingüístico. É dar conta da língua em função.



(In: Revista Língua Portuguesa, nº3, dezembro/05, p.44)




 
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